05/04/2010

Recortes de um Divã. (parte I)

'A loucura mora tão perto que sinto o cheiro do seu feijão. Bastaria tocar a campainha e ela me deixaria entrar, sentar no seu sofá, dormir na sua cama, ler o seu jornal.
Não acredito que haja apenas uma maneira de viver, com aventuras parcialmente aceitas e alguns excessos tolerados. Viajei pouco, confesso: o Ocidente é tudo o que conheço, uma sociedade padrão, em que todos sabem utilizar os talheres e dizer ‘obrigado’ em inglês. Como será uma sociedade tribal, nômade, xiita?
A utopia de um mundo sem regras, onde todos agissem pelo instinto, virou o playground dos meus neurônios. Cansei do normal, quero fugir do estabelecido, do programado, da claque que aplaude cada ato bem pensado. Lopes, como sair de um jogo em que você está ganhando, mas também está perdendo? O que você tanto anota neste bloquinho, hein?
O mais engraçado, ou trágico disso tudo é que quando esta consulta terminar eu vou sair daqui e vou passar na padaria, depois vou por gasolina no carro, e darei uns telefonemas quando chegar em casa. E vou ver televisão, jantar, botar o relógio pra despertar e dormir. E acordar no outro dia, escovar os dentes, vestir um casaco, trabalhar e conviver em sociedade com harmonia e educação, e ninguém perceberá a erupção que tento conter. Mulher, solteira, trabalhadora, estudante, um irmão pentelho, a música como hobby: você acredita nesses resumos?
E o nosso lado serial killer, Marylin Morone, Al Capone, Simone de Beauvoir, ku klux klan?
Para onde vai tudo o que a gente pensa e reprime, tudo o que a gente ouve e estoca, tudo o que a gente lê e compreende, tudo o que a gente vê e não toca?
Para onde vão as idéias que a gente consome e os sentimentos que nos envergonham? Vida interior! Nem mil anos bastariam para eu assimilar tudo o que sinto e acomodar toda essa trupe em mim.
Se você olhar para o relógio agora, vai ver que falta pouco mais de um minuto para eu ir embora. Você tem 60 segundos para reparar que estou com unhas feitas, o cabelo limpo, as pernas cruzadas e a bolsa combinando com o vestido. Meu tom de voz não está alterado. Minhas contas estão em dia. Meu carro está estacionado em local permitido. Meu olhar não está parado. Sei que dia é hoje e em que cidade estamos. Não há nada em mim que você possa usar para justificar uma internação. Lopes, que bando de artistas somos nós.'



(Martha Medeiros - Divã, pgs: 107/108. - modificada.)

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